o (des)temido brasiliês
sobre preconceito e autonomia linguística, norma culta e o tal do travessão (e as linhas tênues entre tudo isso).
1. não se diz “por causa que”, se diz “porque”!
Eu estudo Letras e tenho a impressão de que, quando digo isso, pessoas menos familiarizadas com a área podem ter uma ideia equivocada do que faço e quais são meus objetivos enquanto acadêmica. Uma dessas pessoas é minha mãe. Calma, esse não é mais um texto sobre minha relação conturbada com a minha mãe, mas é que ela é o gancho perfeito para abordar o tema de hoje.
Para contextualizar, cresci em uma família que sempre foi muito preocupada com educação. Nenhum dos meus pais possui uma graduação, mas ambos conseguiram se especializar a partir de cursos técnicos em áreas diferentes: meu pai foi contabilista, minha mãe é cabeleireira. Eles entendem que o estudo é a única saída para quem quer mudar de vida e repetem isso para mim, meu irmão e minha irmã desde nossa infância. Mas além de querer que seus filhos obtenham êxito profissional, minha mãe apenas tem muito medo de parecer ignorante, e esse medo se estende à sua prole. É certo que isso está diretamente ligado à sua criação humilde, assim como às suas dificuldades de aprendizado, portanto não é surpresa que uma das piores manifestações desse medo é o quão rígida e exclusivista minha mãe pode ser ao se tratar do português escrito e falado. Que Deus te livre de cometer erros ortográficos ou usar vícios de linguagem perto dela, você correrá o risco de passar por uma humilhação.
Agora, por conta da minha escolha de curso, minha mãe me usa como um corretor ortográfico, às vezes como Aurélio, outras vezes como livro de gramática, e quando percebe que usou uma palavra errada já me olha com um semblante alarmado, mesmo que eu nunca tenha criticado-a por essas gafes. Na verdade, ela faz isso há muito tempo, pois sempre soube do meu gosto pela literatura e pela linguagem, contudo a situação escalou muito desde agosto de 2024, o mês em que ingressei no primeiro semestre do curso. Quero deixar bem claro que não vejo problema algum em uma pessoa querer escrever e falar conforme as regras gramaticais, até porque acredito que todos deveriam querer aprender a escrever e falar de forma culta, dado que o domínio do idioma e sua gramática é capaz de abrir portas não apenas no tocante à vida profissional, mas em qualquer outra área — e além disso, porque para questionar algo é necessário conhecer bem esse algo, e a gramática pode e deve ser questionada, logo deve ser conhecida. Dito isso, esse não é um artigo anti-gramática normativa. Meu problema é o elitismo que minha mãe e muitas outras pessoas na minha vida praticam quando o assunto é língua portuguesa, muitas vezes sem se dar conta.
Desde muito antes de começar minha jornada acadêmica na universidade, eu já me indignava com insultos direcionados a pessoas que não sabem escrever segundo a norma culta, além de correções de língua falada que poderiam ser deixadas para outro momento, como uma aula de conjugação verbal ao invés de uma conversa informal entre amigos. O motivo: há diferentes nuances nessa discussão que, ao menos para mim, são facilmente identificáveis. Exemplo número um: recentemente, em uma conversa com minha irmã, ela me revelou a situação de uma colega de trabalho que é disléxica. Essa colega sempre pede à minha irmã para revisar os e-mails que precisa enviar por medo de ter cometido erros muito grotescos, e aparentemente ninguém mais sabe de sua dislexia, nem mesmo o RH da empresa viu o laudo, pois essa colega teme ser considerada incapaz de exercer seu cargo. A única coisa que consegui dizer após esse relato foi: “É por isso que a gente precisa ser mais gentil com quem escreve fora da norma.” Mas eu deveria ter completado da seguinte forma: porque o preconceito linguístico é uma realidade triste e cruel no mundo inteiro, porque muita gente se sente moralmente superior apenas por saber que “Por causa que” é uma locução incorreta. Pois, para além de uma situação como essa, na qual o indivíduo tem uma condição neurológica que dificulta a escrita, há a situação que já mencionei, que minha mãe sofreu: acesso precário à educação. E nem falo somente pela questão financeira.
Minha mãe foi matriculada no ensino básico no início dos anos setenta, o português brasileiro só foi padronizado em 1990, quando houve a unificação ortográfica entre os países lusófonos. No entanto, a implementação do Novo Acordo Ortográfico no Brasil iniciou-se em 2009, e foi finalizado somente em 2015. De 1975 para 2015, e agora para 2025, muita coisa mudou em nosso idioma, que atualmente não apenas recebe influência dos diferentes dialetos ao redor do país e suas fronteiras, como também é afetado pelos estrangeirismos que vemos dentro dos espaços cibernéticos — e ainda precisa se adaptar à linguagem neutra, algo que já deveria ter acontecido há muito tempo. Isso tudo para dizer que, mesmo em 1990, a padronização gramatical do português brasileiro já não contemplava de maneira fiel a realidade de nosso idioma, como as estruturas de frases que são comuns a nós no dia a dia e algumas acentuações. Pois, sim, a língua é identidade, e como um país colonizado que frequentemente precisa lutar para desmistificar sua própria imagem, a autonomia linguística torna-se uma pauta que precisa ser explorada com a devida importância. Sendo assim, eu não posso esperar que todo cidadão escreva e fale de acordo com as regras do “bom português”, muito menos julgar quando ele não o faz, especialmente ao considerar a realidade vivida por esse indivíduo. Não é justo olhar para alguém como inferior por não ser culto o suficiente, isso só vai fazer com que essa pessoa sinta mais vergonha de adequar-se à norma, e no caso de alguém como a colega da minha irmã, fará com que ela se sinta um estorvo por uma condição neurológica que está fora de seu controle e precisa ser tratada com profissionais adequados.
2. quem usa o travessão?
Em uma noite chuvosa do dia 21 de junho de 2025, estava eu a rolar a timeline do site que foi rejeitado por Deus e pelo Diabo (Twitter/X, caso não tenha ficado óbvio), e eis que deparo-me com o tweet de um usuário que não nomearei, mas ao qual envio todos os meus pensamentos mais gentis de “Por favor, melhore”, pois se eu tivesse que fazer um ranking dos comentários mais desonestos que já vi a respeito do uso da gramática na internet, o post em questão estaria pelo menos no Top 3. Ele sugeria que conseguia identificar um texto escrito por IA apenas pelo uso do travessão (—), pois quem no mundo se daria ao trabalho de digitar Alt+0151 enquanto escreve? Aparentemente, só eu e mais uma penca de escritores do Substack. Não somos IAs, mas eu bem que gostaria de ser, pois imagino que IAs não devem se irritar com o esforço que algumas pessoas fazem para se manter ignorantes.
Não é necessário se aprofundar demais no funcionamento dessa tecnologia que nem é tão nova para chegar à conclusão de que IAs são treinadas a partir daquilo que já existe no mundo, aquilo que foi feito primeiro por nós, humanos. Qualquer artigo científico que você pegar do Google Acadêmico, cuja data seja de antes dos anos 2010, provavelmente terá um travessão. Qualquer livro escrito por um autor britânico do século XIX que você encontrar em uma biblioteca, independente do ano em que a edição foi lançada e se está no idioma original ou não, provavelmente terá um travessão. Isso porque esse tipo de pontuação é algo básico não só do português brasileiro como de muitas outras línguas que usam o alfabeto latino — e até outros alfabetos, como o japonês —, ou seja, não surgiu com o ChatGPT e derivados, e quem usa o travessão não o faz apenas por um apelo estético ou qualquer outro motivo que não seja o óbvio: conhecer os recursos de escrita e usá-los adequadamente.
Outro equívoco, que chamou atenção não somente minha como de outros colegas do Substack que se depararam com a tal postagem, foi o seguinte: nos comentários dela, o autor respondeu às pessoas que refutaram seu argumento com a insinuação de que há um travessão longo e um travessão curto, sendo o travessão longo usado pelas IAs. Vamos esclarecer uma coisa: hífen, meia-risca e travessão são caracteres especiais diferentes, que servem para funções diferentes.
da literatura lésbica e da microcosmo, que participaram da discussão gerada pelo tweet em um grupo de escritores dessa plataforma, fizeram uma observação fundamental: cada pontuação tem uma maneira própria de ser lida. Um travessão não é o mesmo que um parêntese, do mesmo modo que uma vírgula não é o mesmo que um ponto e vírgula. Diferentes pontuações existem e devem ser usadas, independente da frequência com a qual aparecem nos textos feitos pelas IAs.Portanto, reitero: a questão da autonomia linguística e a problemático do elitismo não podem ser encobertas. Um povo que não se sente bem-vindo a estudar seu próprio idioma, que prioriza a superioridade intelectual acima de uma língua viva que se questiona e se transforma, e que por isso não reconhece os recursos da linguagem falada e escrita, é um povo fadado a reproduzir erros como esse do usuário que falou do travessão longo. Esses mal-entendidos, que são difundidos a rodo e parecem inofensivos, não servem para mais nada além da obstrução da comunicação, um dos poucos artifícios eficazes e de amplo acesso que ainda dispomos para viver com o mínimo de dignidade, lutar e mudar o mundo. A linguagem está em crise e não é de hoje e não é por acaso. Então, se você quer resistir nesse cenário, mas não sabe como, um livro e uma aula de pontuação básica podem ser um bom começo.
Um dia desses, o travessão escreveu uma carta, e não consigo enfatizar o quanto recomendo essa leitura, então não direi nada além de um imenso obrigada pela existência desse texto.
eu passo MAL quando falam MAL do travessão!!!
impecável nico