Durante a vida inteira, estive falando sobre morte e beleza o tempo todo, sem necessariamente me referir a elas. É o mesmo em relação ao amor, mas também não, porque acho que o amor é precisamente um produto da morte e da beleza. Explico: há a vida, o vácuo dentro do qual as coisas passam a tomar forma. Há a morte, o núcleo da vida, sem o qual ela não pode existir. Então, há a beleza, a força motriz que nos faz agir, às vezes gentilmente e às vezes rudemente; ela se encontra dentro da vida, cercando a morte. Por último, há o amor, o produto da combinação vida-morte-beleza, que também se trata da forma mais pura de uma morte de ego, que também se trata do resultado das nossas ações, e por isso é a coisa mais próxima que temos da verdadeira magia. Mas hoje quero me aprofundar na beleza, porque já me estendi sobre a morte e o amor, enquanto a beleza permanece pairando incorpórea nesse espaço que resolvi chamar de meu.
Assim como a escrita sempre o fez e provavelmente sempre o fará, a beleza também vinha a mim como uma compulsão incontrolável. Modifiquei muito de mim para parecer mais bonita, em diferentes níveis: meus gestos, meus interesses, minha fala, meu estilo, meu humor, meu corpo, e a coisa que mais custou minha auto estima, meu cabelo.
Minha mãe é cabeleireira desde que comecei a frequentar o ensino básico. Ela é especializada em cortes desconexos e conhece a ciência da colorimetria como ninguém. Porém, sua pouca experiência com cabelos com curvatura impediram-na de lidar com meu cabelo natural quando eu era criança.
A curvatura do meu fio é um ondulado entre os tipos 2A e 2C, e sua textura é mais resistente e com um aspecto espesso. Quando finalizado (e dependendo do clima), parece o cabelo da Julia Roberts nos anos 90, e se eu penteá-lo quando seco, vai parecer o cabelo de uma das musas pré-rafaelitas. Mas eu nunca finalizei meu cabelo quando criança por não saber o que era isso, nem conhecia a beleza de Lady Lilith de Dante Gabriel Rossetti. O que eu sabia sobre meu cabelo na época resumia-se a isso: era indomável, volumoso demais ao ponto de constantemente ouvir a piada “Cuidado quando sair na rua, vão achar que tu tá armada”, e ninguém nas novelas da televisão tinha um cabelo igual. Mas meu sonho era ser atriz e cantora! Como eu conseguiria entrar no show business com um cabelo horroroso?
Minha jornada com o alisamento começou por aí. Lembro-me de quando minha mãe fez escova no meu cabelo pela primeira vez, que também foi a primeira vez em que me senti bonita: eu ainda estava no primeiro ano do ensino fundamental. Fiquei absolutamente obcecada pelo meu reflexo, não conseguia parar de mexer a cabeça só para observar aquele véu castanho esvoaçando nas minhas costas. Então, aos oito anos pedi para que fosse feito um alisamento químico. Enchi tanto a paciência da minha mãe que ela acabou cedendo e comprando um produto de blindagem, mesmo com o receio de usar formol na minha pele ainda em desenvolvimento. Eu, por outro lado, não poderia estar mais radiante.
Minha primeira progressiva veio aos onze. Foi nessa mesma época que comecei a pintar o cabelo com cores fantasia também, o que apenas intensificou a completa destruição da saúde dele — e da minha pele, pois aos dezessete anos desenvolvi uma psoríase capilar que resultou dos danos químicos + estresse + falta de vitamina D. Eu buscava uma gratificação instantânea, pouco me importava com procedimentos de hidratação, nutrição e reconstrução que ajudariam meu cabelo a longo prazo. Não tenho muitas fotos dessa época, o motivo: mesmo com os alisamentos, ainda não me sentia muito decente. Isso é um testemunho do fato de que minha compulsão pela beleza vinha de um lugar muito mais profundo do que a superficialidade de atrair alguns olhares e elogios — nem elogios eu aceitava, para início de conversa. Até hoje sofro de uma péssima reação à recordação de que tenho um corpo, de que minha existência é humanamente palpável.
O vento começou a mudar de direção quando descobri todo um movimento chamado transição capilar. Veio ao meu conhecimento através de uma seguidora mútua no (falecido) Twitter. Ela postava sua jornada de recuperação do cabelo natural, mas talvez mais importante do que isso, compartilhava os porquês dessa jornada, que estava de alguma forma ligada à quarta onda do feminismo e à luta racial. O ano era 2016, a geração do incômodo nascia, Quebrando o Tabu inaugurava o Fora Temer Core, eu tinha treze anos de idade e estava ainda no crepúsculo da descoberta desse mundo de políticas sociais e pequenos atos de resistência, então é evidente que passei a estudar sobre a tal da transição capilar religiosamente.
Mais do que me ajudar a aceitar meu cabelo natural — o que já é uma grande coisa! —, toda essa experiência, que durou uns bons cinco anos (tive muitas recaídas, não me julgue), mudou toda a minha percepção sobre beleza ao inserir a noção de que é necessário dar significado ao que vejo para criar o que podemos chamar de um “catálogo particular de beleza”. Porque é muito fácil dizer que olhos azuis são bonitos quando eles foram estabelecidos como convencionalmente atraentes. Mas digamos que você prefere olhos castanhos porque a avó que você amava tinha um pé de jabuticabas no jardim e olhos castanhos te lembram desse pé de jabuticabas, o que por sua vez evoca memórias da sua avó e dos lindos momentos que vocês viveram lado a lado. Então, certo dia, você passa umas férias em uma praia com a água mais azul que você já viu e conhece alguém que recorda a personalidade da sua avó, mas essa pessoa tem olhos azuis como o mar que você ficou encarando durante um pôr do sol. De repente, você ama olhos azuis tanto quanto ama olhos castanhos porque agora eles têm um novo significado, e toda vez que você estiver perto do oceano, vai se lembrar deles, e indiretamente, da avó que você vai amar para sempre. Esse é só um exemplo de como eu prefiro abordar a beleza na minha vida hoje em dia, mas note como ele é cheio de camadas.
Acredito que essa impressão de que quanto mais estéticas diferentes surgem para “contemplar” o maior número possível de pessoas mais perdemos nossa capacidade de encontrar o que é realmente bonito para nós já está batida, mas vale ressaltar o problema, porque é justamente isso que está em jogo para mim, na maior parte do tempo. Tenho medo de perder a subjetividade do que julgo belo porque isso seria perder uma parte essencial de quem sou e da ideia de mundo que quero criar, por isso não posso separar o fato de que acho cabelos cacheados sem definição e cheios de frizz mais bonitos do que cabelos cacheados definidos e sem frizz, pois, quando vejo uma mulher com esse estilo mais despojado e um pouco selvagem, vejo uma grande afronta a todo um sistema que quer ver mulheres sendo dominadas e controladas até, literalmente, o último fio de cabelo.
Em suma: pare de olhar para tendências e comece a olhar para o que dialoga com os seus ideais. Essa é a grande moral da história. A maioria de nós tem uma vida ordinária com empregos ordinários cuja função não é apelar para o olhar das massas, como modelos, atores, dançarinos e outras profissões dentro da indústria do entretenimento precisam fazer. Essa pressão para tentar ser A Clean Girl Exemplar não só destrói nossa autoimagem como também destrói nossa conta bancária, portanto, a partir de agora, creio que seria mais saudável para todo mundo tomar mais cuidado antes de aderirmos a uma nova moda.
Quero agradecer à
por revisar esse artigo e ajudar-me a manter sua leitura mais clara e natural. Recomendo enormemente o serviço de revisão ortográfica que ela oferece, não apenas porque suas sugestões de correção são pontuais e bem elaboradas, deixando claro qual o problema e dando diferentes alternativas de substituição, mas também pela preocupação em manter a essência da escrita original. Você pode ler em mais detalhes sobre o trabalho dela como revisora aqui. Eu também recomendo suas newsletters literatura lésbica e contos, poemas e outros mundos.A beleza é um desses tópicos sobre os quais eu poderia dissertar por horas. Esse texto não é nem 1% do que eu gostaria de falar, mas não sei encontrar as palavras que faltam. Por isso, pergunto: você tem uma maneira particular de interagir com a beleza, de pensá-la? Eu gostaria de saber.
obrigada pela indicação, nico 🥺 adoro sua escrita e esse texto é fenomenal, amei desde a primeira vez que li 🧡
Eu me lembro de quando era criança e minha vizinha tinha um cabelo cacheado maravilhoso enquanto o meu era "só liso". Enquanto eu daria tudo pelo cabelo cacheado ela daria tudo pelo meu liso. A gente aprende desde criança a não dar valor ao nosso, e fazer dele belo 😔