inadequação, juventude e sensualidade
livros, filmes, músicas e mais: o que fez meu cérebro coçar entre abril e junho de 2025.
ser cobra machucava os cotovelos, melhor ser borboleta. mas quem ia ser borboleta decerto era otávia, que era linda. “e eu sou feia e ruim, ruim, ruim!”, exclamou dando murros no chão.
Ciranda de Pedra e narrativas de inadequação
O bildungsroman, ou romance de formação, é um dos gêneros ficcionais mais populares e amados, uma vez que sua articulação, quando bem feita, é capaz de incitar as mais profundas camadas de identificação em seus leitores e, por isso, transcender gerações. Porém, seu princípio enquanto gênero literário, assim como o de muitos outros, foi essencialmente masculino, burguês e local — nesse caso, alemão —, dado que a obra tida como inaugural do bildungsroman trata-se de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795), do autor alemão Goethe. Mas o que é o bildungsroman?
O romance de formação é uma narrativa que segue seu protagonista da infância até a vida adulta — às vezes, até a morte — e descreve as trocas feitas entre esse personagem e o mundo ao seu redor, as quais certamente hão de causar graves transformações internas e externas. Portanto, é de se imaginar os motivos para a teoria literária ter mantido o bildungsroman tão limitado em suas representações durante um bom tempo. Só muito recentemente as obras de Jane Austen e das irmãs Brontë — notadamente Charlotte com Jane Eyre e Emily com O morro dos ventos uivantes — foram resgatadas como pertencentes ao gênero, ou algo híbrido, como é o caso do livro de Emily. Isso é possível agora somente porque a crítica literária feminista do século XX veio ao nosso socorro, o que proporcionou o florescimento de belíssimas obras ao redor do mundo que exploram questões sociais relacionadas às vivências femininas, assim como o reconhecimento das já existentes. Entre essas obras está Ciranda de Pedra (1954), da autora brasileira Lygia Fagundes Telles.
Lygia é minha autora brasileira favorita até o momento. Antes de ler Ciranda de Pedra já havia me familiarizado com sua escrita através de outras duas obras, mas foi mesmo a leitura mais recente que fez com que ela ascendesse ao pódio. Seu fluxo de consciência nunca fora tão intenso, e sua abordagem temática, como sempre, foi pontual.
O enredo tem como protagonista a insegura Virgínia, em princípio uma criança emocionalmente negligenciada, criada em uma casa onde a sanidade e a estabilidade financeira nunca pararam para fazer uma visita. As figuras que compõem o cenário são: Laura, a mãe em sofrimento psíquico; Daniel, o padrasto cujas tentativas de aproximação são sempre em alguma medida desprezadas; e Luciana, a empregada da família — e única personagem negra da história. Mas há um núcleo em outra residência, aparentemente muito mais segura e abastada, que nunca falha em roubar toda a fascinação da protagonista: Natércio, o pai que sempre está ausente; Bruna, a irmã obcecada pelo perdão de Deus; Otávia, a outra irmã, mais bonita e mais simpática e mais talentosa; Conrado, o primeiro amor de Virgínia, que ama Otávia; Afonso, que ama Bruna e não está nem aí para Deus, talvez nem para absolutamente nada; Letícia, a irmã de Conrado, que só quer saber de Afonso; e por último, mas não menos importante, Frau Herta, a governanta de origem alemã que trata Otávia como uma bonequinha de porcelana, mesmo não sendo tão apreciada por isso. Essa ciranda, digna de trama de novela (e não por acaso a obra foi adaptada duas vezes para a televisão), é o combustível das ações de Virgínia ao longo de toda a narrativa, o que por vezes me deixou claustrofóbica, mas precisamente por isso tão vidrada ao ponto de não conseguir largar o livro a partir do momento em que li a primeira linha. Foi um efeito parecido com o de Eu, que nunca conheci os homens (você pode ler o texto erotismo, devastação e linguagem para entender melhor ao que me refiro), mas muito mais gratificante.
Sou obcecada por personagens desencaixadas, e Virgínia atende a todos os requisitos de uma. Ela é confusa, estranha e pavorosamente carente de um jeito que só uma criança consegue ser, o que mais tarde, na vida adulta, se traduz em tendências impulsivas e autopiedosas — e aqui é a parte na qual preciso confessar, rindo de nervoso: é como olhar para um espelho! Mas um dia Virgínia irá descobrir que nem tudo é o que parece ser, e que às vezes o melhor é ficar de fora da ciranda. Maior do que minha obsessão por personagens desencaixadas é minha obsessão por personagens que descobrem que não tem como se encaixar em certos lugares. Você deve criar seu espaço, só então o amor que procura vai aparecer — voluntariamente.
uma casa não pode tornar-se habitável com apenas uns poucos dias de existência.
Impressões sobre Drácula
O romance gótico da vez foi nada mais, nada menos do que a origem do vampiro predileto de todo mundo (exceto, talvez, pelas pessoas que ainda amam Crepúsculo e The Vampire Diaries, ou que embarcaram nos encantos de Lestat de Lioncourt). Preciso admitir que demorei para terminar esse, mas estou culpando o fato de que minha capacidade de concentração tende a triplicar em dificuldade quando tenho mais tempo livre do que realmente preciso. E mesmo com toda essa paciência e dedicação, Drácula, não satisfeito com nossa separação, persistiu em meus pensamentos durante mais algumas semanas após o término da leitura. Não tenho nenhuma abordagem específica ou linear sobre a história, pois antes de tudo: é um livro longo, minha edição de bolso tem 549 páginas e os parágrafos se estendem por frente e verso e às vezes mais. Muito é dito e muito fica subentendido, de modo que eu poderia reler essa obra várias vezes e sempre achar um novo ponto para dissecar. Então, para todos os efeitos, farei um breve apanhado do que se destacou ao longo dessa primeira visita ao livro a partir das anotações mais pertinentes que fiz sobre ele.
Há muitas passagens dedicadas a elogios sobre a figura masculina, especialmente nos diários e cartas escritos pelas personagens femininas — o que parece óbvio, pois essa é uma obra do século XIX, mas não acredito que o autor estivesse só reproduzindo os padrões do senso comum da época devido à concordância com os mesmos. Sabe-se que Bram Stoker pode ter sido um homem gay reprimido e que Drácula tem papel crucial nessa suspeita, e eu entendi o porquê. Certos trechos põem isso em cheque muito evidentemente.
Destaco essa passagem, que nem fala da figura masculina, mas prova o homoerotismo completamente gratuito da narração: “Se o Sr. Holmwood se apaixonou por ela ao vê-la apenas num salão de recepção, nem consigo imaginar o que diria caso tivesse a ventura de olhar para ela neste instante.” [Contexto: a personagem Lucy está dormindo enquanto Mina, sua melhor amiga, observa-a e escreve essa passagem em um diário.] Além desse trecho há outros momentos que fariam qualquer leitor contemporâneo se perguntar sobre a natureza dos sentimentos entre essas duas grandes amigas. Eu já estava torcendo para que o beijo entre Lucy e Mina na adaptação do Coppola fosse real no livro e não só fruto de um headcanon.
Fora o subtexto queer, minha interpretação também levou-me a perceber alusões a abuso sexual e à culpa cristã que pode ficar com os sobreviventes. No caso de uma personagem, ela é atacada pelo conde em uma situação especialmente traumatizante para todos os envolvidos. Quando se encontra a salvo, o doutor Van Helsing tenta abençoá-la com uma hóstia que queima a pele dela, simbolizando sua contaminação pelo vampirismo. Essa queimadura é sempre relembrada e a personagem que a carrega refere a si mesma como impura quando o tópico é abordado. É claro que o vampirismo e essa “impureza” são alegorias para doenças da vida real, mas o contexto da contaminação das personagens femininas, especificamente, me pareceu carregado de algo mais.
Por hoje, é isso sobre Drácula. Ainda pretendo assistir novamente a adaptação do Coppola, já que faz um bom tempo desde que vi pela última vez (e é sempre bom assistir Winona Ryder atuando), mas também quero tirar o atraso de outras obras vampirescas que tenho adiado há anos, como Only Lovers Left Alive (2013), de Jim Jarmusch, e o Nosferatu de Herzog — e não, não vou assistir ao remake mais novo, sinto muito Nicholas Hoult!
você não entende nada de humanos. eles sabem que vão morrer, mas ficam desperdiçando tempo sem se preocupar com isso. é a diversão favorita deles.
La belle endormie (2010), Sleeping Beauty (2011), e reflexões sobre a juventude (ou: em defesa do cinema criado por mulheres)
O tempo é um dos temas mais difíceis para mim, não consigo falar a respeito dele sem me sentir apavorada. Talvez porque sou saturnina antes de sequer ser lunar e Saturno é o senhor do tempo, ou talvez porque nasci prematura, mas de todo modo a sensação que tenho é de estar numa corrida interminável, sempre em último lugar. Ainda assim, tenho como prazer masoquista ler, ouvir e assistir histórias cujo tema central é um desses: a passagem, o congelamento ou o recomeço do tempo. Não à toa meu conto de fadas favorito durante a infância era A Bela Adormecida, e até hoje sou atraída por suas inúmeras adaptações. As mais recentes a me chamarem atenção foram La belle endormie (2010), da diretora francesa Catherine Breillat, um filme gravado originalmente para a televisão que veio ao meu conhecimento através de uma amiga, e Sleeping Beauty (2011), da diretora e romancista australiana Julia Leigh, que na verdade foi uma redescoberta feita em uma noite qualquer de abril, quando maratonei os FMVs de músicas não lançadas da Lana Del Rey que eu amava quando tinha doze anos de idade. Alguns deles contavam com clipes breves de partes do filme, e rever Emily Browning, que interpreta a protagonista, trouxe recordações de uma época da minha adolescência que até hoje tento olhar com carinho: o Tumblr 2014. Então, assisti ao filme e gostei. Bastante.
A seguir, uma sinopse e um breve comentário para cada um dos filmes:
1.
Ao nascer, a princesa Anastasia é vítima da maldição de uma bruxa malvada que a faria morrer aos dezesseis anos. Suas madrinhas, três fadas detentoras de poderes milagrosos, tentam encontrar um antídoto, mas só conseguem chegar a uma solução pouco prática: a princesa cairá em sono profundo a partir dos seis anos de idade e, durante todo um século, seu único alento será sonhar com aventuras épicas nas quais somente ela fará o papel de heroína. Mas essas aventuras só começam a partir do momento em que Peter, um dos primeiros fragmentos da imaginação de Anastasia e também o grande amor dela, foge em busca de sua própria motivação para ser feliz quando chega na puberdade.
Em essência, La belle endormie é uma história sobre a perda da inocência, e por isso moldá-la pelas lentes de um conto de fadas é nada mais que preciso, mas é quando o filme abandona esse molde e nos joga na decepção e crueza do mundo real, só por alguns minutos, que a mensagem de fato me dá um sacode. Muita gente não gosta desses quinze minutos finais. Se você acessar a página do filme no Letterboxd vai encontrar muitos comentários alegando que é uma bagunça, porque destoa do restante da história, porque é desnecessário. No entanto, acho que essa leitura é muito simplista. O filme se recusa a continuar fantasiando conforme os créditos se aproximam, conforme a ingenuidade da protagonista é testada e arruinada, e esse é o ponto: a perda da inocência implica a perda da imaginação.
2.
Lucy é uma estudante universitária em constante necessidade de dinheiro. Por esse motivo, ela divide um apartamento com outras duas pessoas e vive intercalando os empregos fixos e bicos que arranja por aí. Num fatídico dia, ao folhear o jornal, ela se depara com um anúncio de emprego e decide entrar em contato com o empregador: uma agência no mínimo suspeita, que busca alguém para a vaga de bela adormecida. Tendo pouca consideração por sua própria segurança, Lucy preenche o cargo. Ela dorme profundamente, nua, em uma cama desconhecida, sem saber quem se deitará ao lado dela. Ela acorda no dia seguinte sem lembrar de nada, como se tivesse passado só mais uma noite comum.
Em entrevistas, a diretora Julia Leigh revelou que o esqueleto de Sleeping Beauty começou a tomar forma através de um pesadelo recorrente no qual ela era vigiada enquanto dormia, o que fê-la notar o quanto esse estado de inconsciência nos torna vulneráveis, e ainda assim fazemos pouco caso dele quando acordamos, sem nos indagar: O que poderia ter acontecido comigo enquanto eu dormia? Por si só a ideia já causa desconforto, mas no contexto do filme ela se torna ainda mais obscura. Não por acaso as descrições dele variam entre “intelectualmente estimulante” e “um sexploitation ambíguo e perturbador”. Porém, embora o elemento erótico faça parte do apelo que me fez sentar para assistir o filme, o que me fez ficar para terminar foi o retrato mais que fiel de uma mulher no início dos vinte e poucos anos que não sabe o que buscar: se independência, se conexão, se morte.
se for pra transcender, desmitificar / se entorpecer, se intensificar, eu consigo / quer entrar no mar? eu te guio.
Coisas Naturais e o misticismo sensual da MPB
Falar de Marina Sena é sempre como mexer em um vespeiro. Há quem detesta sua personalidade e por isso se recusa a dar uma chance para o que ela vem criando, há quem lambe o chão onde ela pisa e acha que todo mundo deveria fazer o mesmo. Para ser honesta, não me importo muito com nenhum dos extremos desse espectro. Não vejo como alguns TMIs podem tirar o crédito de sua genialidade enquanto artista, nem acredito que ela está isenta de críticas construtivas, mas hoje irei apelar para o lado dos fãs, porque Coisas Naturais, embora não seja uma obra-prima sem skips, é uma das mais belas demonstrações do amadurecimento musical de Marina.
Combinando o romantismo das composições do disco De Primeira com a experimentação sonora de Vício Inerente, é seguro dizer que essa nova adição à discografia de Marina confirma que não se trata de sorte quando o assunto é entregar um trabalho bem feito, e se durante o lançamento dos álbuns anteriores ficou alguma dúvida sobre sua consagração como uma das artistas nacionais mais interessantes da atualidade, Coisas Naturais dispensa debates. A maldição do terceiro disco não se encaixa aqui.
Embora seja possível reconhecer o marulho de suas principais referências ricocheteando em cada cadência, Marina canta um cenário tropical contemporâneo autêntico, desembaraçado, um pouco perverso, que reconhece a sensualidade no misticismo. Um feito de nomes como Gal e Bethânia que é pouco evocado hoje em dia, e quando é, parece fabricado. Acho que isso é o que torna Marina uma figura que vale a pena acompanhar: ela é o que ela canta. Ela é a sereia encantadora, a bruxa impura, a amante enlouquecida. Um dia diz coisas descabidas, outro dia diz coisas sensatas, mas sempre coisas naturais à ela.
mais, mais, mais…
Outros destaques que valem uma breve menção
Ava Patrya Yndia Yracema, segundo álbum da cantora-compositora e cineasta brasileira Ava Rocha, foi lançado há dez anos atrás, mas poderia muito bem ter estreado ontem. Esse é um camaleão sonoro que tocará em cada segundo do meu verão, porque gosto de um clima assim: pop, político e lascivo.
Certo dia as ilustrações de Sheepeden surgiram na FYP do meu Pinterest e nunca mais fui a mesma. Já faz um tempo que não me interesso por pinturas e ilustrações, mas essa descoberta reacendeu minha curiosidade. Gosto da sensação de estar entrando em um mundo fantástico, onde os verdes, púrpuras, rosas e cinzas predominam.
Miu Miu Fall 2025 Ready-to-Wear Collection, porque não poderia faltar, porque Miuccia Prada nunca me decepciona. Agora, veja minhas combinações favoritos da coleção:



Amo ciranda de pedra com todo o meu coração e amei as outras indicações
Amo entrar na sua cabeça e saber o que vc gosta!
"Drácula de Bran Stocker" é um dos meus filmes preferidos (apesar de eu não ter vencido o livro, ainda) e que fez eu me apaixonar por cinema. Também assisti "Only Lovers Left Alive" em uma maratona que fiz de filmes da Tilda Swinton. - É um filme lindo, poético e melancólico como só os vampiros conseguem ser.
Assisti "Frankenstein de Mary Shelley"(1994) recentemente e acho que você pode gostar, se já não tiver assistido. - Afinal, qualquer filme de época que traga Helena Bonham Carter interpretando um papel extremamente dramático, vale a pena.
Com certeza vou adicionar os demais itens indicados na minha lista!